O FUTEBOL COMO VÁLVULA DE ESCAPE


 

O futebol é o esporte mais popular do planeta. No Brasil, por exemplo, superou a barreira esportiva para fazer parte da formação cultural popular, mecanismo importante na identidade nacional. Contudo, em vários países, o futebol é visto como algo acima do cenário esportivo. É mais que um jogo.

Escrevo isso pois nos últimos dias observo a comoção existente na Argentina com a recepção a seleção nacional, campeã mundial. O povo celebra o título como um triunfo do país. Há relatos de que houve uma procura de cerca de 7 milhões de pessoas em busca de ingressos para os amistosos contra Panamá e Curaçao, eventos comemorativos para a equipe nacional diante do seu povo. O futebol, neste caso, virou uma tabua de salvação popular para esquecer as mazelas que atingem a Argentina, fato corriqueiro na história dos nossos vizinhos sul-americanos.

A Argentina passa por uma crise econômica que, aliás, parece ser permanente no cotidiano nacional. A inflação alta, a maior deste século, a perda expressiva de poder de compra dos argentinos inclusive quando relacionados aos vizinhos brasileiros e uruguaios mergulham o país em uma espécie de depressão. A crise econômica aumenta o problema social e as contradições que derivam dele. O fato curioso é que esse cenário envolvendo o futebol é bem conhecido por lá.

Em 1978, a Argentina vivia sob uma sangrenta ditadura militar que duraria até 1983. O governo conseguiu a articular junto a FIFA (surpresa zero!) o direito de sediar o mundial daquele ano. A própria Argentina venceu o torneio e a euforia serviu, ainda que por um instante, para mascarar as atrocidades cometidas pela ditadura comandada pelo sanguinário general Jorge Rafael Videla. O povo saiu às ruas para comemorar a conquista do primeiro título mundial para tentar esquecer por um momento o caos social e político que atravessava o país, acompanhado por uma depressão econômica. A comemoração do povo nos espaços públicos naqueles dias também serviu para ocupar lugares que o regime não permitia rotineiramente.

Em 1986, o cenário era parecido ainda que houvesse algumas diferenças. O regime militar tinha caído, mas a crise econômica e social assolava o governo do presidente Raul Alfonsín. Nesse clima, a seleção venceu a copa do mundo daquele ano sob a batuta do genial Diego Armando Maradona. O bicampeonato foi intensamente celebrado pelo povo e a vitória contra a Inglaterra nas quartas de final foi comemorada como um título. A razão de tal atitude foi a derrota humilhante imposta pelos ingleses aos argentinos quatro anos antes na Guerra das Malvinas. Maradona, particularmente, soube capitalizar muito bem o confronto e a posterior vitória por 2 a 1, na qual marcou os dois gols em uma atuação considerada histórica. Novamente o futebol foi utilizado para esquecer as agruras populares enfrentadas pelos argentinos.

Em 2022, idem. Como citei acima, a depressão econômica e social continua presente na Argentina. O país já foi comandado por governos de esquerda e direita com a permanente incapacidade de resolver ou amenizar os efeitos da crise econômica que assola o povo argentino. A recepção calorosa aos heróis que conquistaram o tri mundial no Qatar serve para esquecer o desemprego altíssimo, a onda de violência e a constante desvalorização do dinheiro argentino. Messi encarna o herói nacional, como Maradona, aquele que traz um pouco de alegria ao povo em momentos difíceis e passa a impressão de que poderia resolver todos os problemas do país.

Não é novidade o futebol servir como válvula de escape. No Brasil, quatro dos cinco títulos mundiais conquistados pela seleção (62,70,94,2002) serviu para mascarar algum tipo de crise que o país enfrentava. O título que lembro de presenciar, 2002 (em 94 tinha três anos), chegou em meio a uma crise econômica e social que vinha desde 99 e acarretou na derrota do governo nas eleições do ano do penta. Recordo que o povo dizia que aquela conquista era o único momento de alegria que tinham em muito tempo. E o futebol proporcionou isso.

Na Espanha, o futebol e o Barcelona ofereceram ao povo catalão alegrias em meio a perseguição da ditadura franquista sobre a região. Na Inglaterra, o futebol ajudou o povo durante o período de guerras e o caos social durante o governo de Margaret Thatcher na década de 80. Em Portugal, caso parecido durante o regime salazarista. Na América Latina, os casos são inúmeros.

Enfim, o futebol consolidou sua natureza de superar as barreiras do esporte. Em vários lugares do mundo, em diferentes sociedades, diversos contextos. O fato de mexer com a emoção popular confere ao futebol natureza singular enquanto manifestação social, política ou cultural e isso chama a atenção tanto dos estudiosos quanto de regimes tiranos interessados em obter popularidade.

O futebol é uma válvula de escape e a comoção dos últimos dias na Argentina prova que essa tese continua mais viva do que nunca.

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